Fotoletras Poéticas

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domingo, 19 de julho de 2009

O primeiro sapato

Karina Campos
Belo Horizonte / MG, 05 de abril de 2007.

Obs.: Esse conto foi Destaque literário no Concurso Letras Premiadas Alpas XXI – Edição 2007.

Estrelas no céu. Milhões de estrelas no céu.
Já passara a metade da noite e a estrada estava deserta. Estrada estreita, terra fofa, o clima ameno. Ainda não serenara. Uma poeira de luzes pisca no ar qual lanternas a alumiar a noite. Belos vaga-lumes, estrelas cintilantes, habitantes da Terra.

A sinfonia dos grilos, das cigarras, dos sapos ecoa da mata nos arredores desta estrada. Gigantescas árvores abrem frestas para que a lua e as estrelas sejam bússola aos andarilhos.

Um uivo rasga a noite e cala a orquestra dos bichos.
Ele não se assusta. Continua sua caminhada na calmaria dos anciãos.
Pés descalços, rachados, acostumados às erosões, calos duros, guiados pela experiência, levados pela rotina daquela estrada. Bela estrada!

Para onde o levaria?

Calças arregaçadas, esgarçadas, cerzidas, mas limpas. Camisa desbotada em tom de palha, quarada pelo sol.

Rosto calmo, franzido pelas rugas da idade, pelos anos de luta, de busca. Um cachimbo no canto da boca, com um jeito único de fumar: ele o mascava.

Devagar, pé ante pé, uma de suas mãos segurava o cachimbo, a outra o cajado.

Aos setenta e dois anos, o Senhor Galadriel percorria este caminho. Voltava da fazenda do “Grande Senhor” para seu casebre.

Andava freqüentando a escola para aprender a assinar o nome. Não queria mais registrar o polegar. Achava importante aprender a escrever o próprio nome. Embora quase o esquecesse diante de ser tratado sempre por “Seu Driel”.

Representou por toda sua vida o significado de seu nome: ser bom diante de Deus. Não bastasse, seu sobrenome era “dos Santos”.
Freqüentava a Igreja Nossa Senhora das Dores no lugarejo de Pedra Negra, aos domingos e dias santos.

Seu Driel ia e vinha naquela estrada por tantos anos. Por tantos anos sempre descalço.

Calçou no dia do seu casamento com a falecida Zinha um par de chinelos de borracha amarelos e no paletó branco que foi de seu avô usou um cravo colhido do quintal. Seu sorriso iluminado ainda tinha a dentição. Hoje lhe restam poucos dentes, mas o sorriso da boca que masca o cachimbo ainda é iluminado.

Seu Driel caminha. Anda guiado pelos pés descalços. Os pés que conhecem cada pedra, cada cascalho, cada grão de areia daquela estrada.

Zinha, que foi seu primeiro e único amor engravidou pouco depois de se casarem. Em seu humilde lar explodiam de alegria.

Seu Driel pegava a estrada cantarolando, venerando a chegada do filho. Sempre vaqueiro, cuidava dos bichos como cuidava de Zinha. Cheio de zelo, amor, carinho...

O curral era seu lar durante o dia. À noite, os braços de Zinha.

Os meses se passaram e numa noite Seu Driel foi chamado pelo capataz da fazenda às pressas. Era Zulmira, a vaca holandesa que dava cria. Emprenhou precocemente do garrote Zeus. E lá se foi Galadriel, andando a passos gigantes, pés apressados para ajudar Zulmira a parir o bezerro. No chão a coitadinha não agüentava mais de dor e acalmou-se ao ver seu zeloso cuidador.

Sofreu. Sofreram. Os três. Sofreram muito.
A vaca Zulmira, Seu Driel e Zinha.

Enquanto Seu Driel ajudava Zulmira, Zinha desfalecia-se em dores do parto. Só. Gritava e gemia a vinda dos bebês. Eram gêmeos. Nas redondezas só os bichos a ouviam. Gente mesmo não estava a menos de um quilômetro dos diâmetros de sua casa.

Deitada, agarrava com as unhas os lençóis úmidos de sangue, suor e nada da chegada de Driel.

Urrava como onça presa em caverna.
Fez muita força e, enfim, nasceu o primeiro dos bebês.
Zinha olhou naquele rostinho que lhe sorriu como primeiro ato terreno.

Branca, pálida, sem forças, suspirou e caiu para trás. Não voltou mais à vida. Nem com a chegada do marido algumas horas depois.

Seu Driel desesperou-se, desesperançou-se.
Viu seu filho nas entranhas da mãe, ambos imóveis.
Chorou de tristeza. Chorou de alegria.
Tomou todas as providências para o velório de Zinha e seu segundo filho, que ia no ventre da mãe.

No filho vivo pôs o nome de Samuel, o mesmo nome do bezerro de Zulmira e Zeus.

O dono da fazenda mandou entregar a Galadriel uma caixa no dia seguinte.
Envolta de laço azul, Seu Driel desfez calmamente cada volta da fita. Abriu a tampa, apalpou todo o papel de seda. Desembrulhou o presente. Era um belo par de sapatos italianos, bico quadrado, preto, envernizado.

No fundo da caixa um bilhete escrito com letra firme:

- Caro Galadriel,

Envio os sapatos para que te sintas bem.
Nada melhor que um par de sapatos quando perdemos o chão.
Embase-se neles.
Condolências,

Francisco Nonato.

Aos vinte e sete anos Galadriel recebera os primeiros sapatos de sua vida. Usou-os no velório e no enterro. Chegou em casa, limpou-os, lustrou-os e guardou-os novamente.

Os anos foram passando. Seu filho Samuel crescia. O bezerro também. Antes que Samuel se tornasse um rapaz, o bezerro Samuel tornou-se garrote.

Sempre amigos. Samuel, o pai e o garrote.

Ainda hoje, Seu Driel abre a caixa de sapatos somente para cuidá-los. Não mais o calçou.
Aos setenta e dois anos embasa-se na sola dos próprios pés. Não mais calçou sapatos. Anda com pés no chão. Calçado de sua própria segurança. Do coração que pulsa em seus pés.

Seu caminho, sua estrada sempre o levam para casa.

Mas no caminho, além das vozes dos bichos, ouve-se também o sorriso de Zinha.
Um sorriso que as estrelas, o céu, as árvores respondem nos balançar dos ventos, na voz da noite.

E ele caminha, deixando suas pegadas na terra fofa, ecoando sorrisos que enlaçam os sorrisos de Zinha.


Todos os direitos reservados ao autor. Autorizada cópia, desde que divulgada/preservada a autoria.

Um comentário:

  1. Quando li "O Primeiro Sapato", joguei meus scarpins,sandálias para o alto; hoje prefiro andar descalça.
    Conto encantador!!!

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